O Apóstolo em Cada Ser Humano
Para muita gente ainda continua um mistério o significado real de a mulher de Lot ter-se convertido em estátua de sal, após contemplar a destruição de Sodoma e Gomorra. É bom recordar que isso aconteceu porque ela olhou para trás, saudosa…
Segundo o Velho Testamento, as duas cidades celebrizaram-se como verdadeiros núcleos de licenciosidade. Eram, portanto, um centro de degeneração.
Encontramos aí um interessante simbolismo ou alegoria. Não se trata apenas de um relato bíblico. É algo muito mais profundo. Mais uma vez deparamos com a história do próprio ser humano, sempre às voltas com os desafios inerentes ao caminho do progresso espiritual.
Sodoma e Gomorra simbolizam o elemento que, por se corromper, perdeu a sua utilidade, e o seu lugar, dentro do processo evolutivo. A mulher de Lot representa aquele tipo humano incapaz de libertar-se de hábitos nocivos e ideias ultrapassadas. Insensível a estágios ou vivências mais elevadas, apega-se a estruturas bolorentas e enferrujadas, embora só possa sofrer prejuízos com essa resistência. Olhando para trás, demonstrou sua ligação com aqueles restos que se consumiam, ao invés de encetar uma nova busca.
É uma perfeita alegoria à cristalização.
O ser humano comum, é bom ressaltar, traz consigo uma tendência à acomodação. Se, do ponto de vista material, a vida que leva é relativamente “boa”, opor-se-á, tenazmente, a qualquer tipo de mudança, mesmo salutar à sua formação espiritual.
A acomodação, diante de qualquer análise, surge como algo pernicioso. No Universo tudo se encontra em constante movimento, sempre em direção a degraus superiores. A inércia, por ser contrária às leis naturais, gera reações às vezes violentas. O ser humano, por ser elemento integrante do contexto cósmico, não deixa de estar sujeito a essa lei.
As transformações constituem uma necessidade evolutiva. São uma manifestação da Luz de Deus, sempre objetivando abrir mais amplos horizontes para a humanidade. O ser humano sofre porque resiste às transformações, insistindo em permanecer impenetrável aos raios da Luz Divina. Às vezes, contempla a estrutura em que viveu durante muito tempo ruir fragorosamente. Mesmo assim, cede à tentação de olhar para trás, observando demorada e nostalgicamente os escombros. É um indicador de sua cristalização. O curso da própria vida acabará por reintegrá-lo ao progresso. Isso, todavia, ocorre, quase sempre, às custas de muito sofrimento.
É importante “tomar do arado e não olhar para trás”, como exortou o Cristo.
Conta-se que o conquistador romano Júlio César, quando aportou nas ilhas britânicas, ordenou a seus soldados que queimassem os navios. Assim, ninguém pensaria em voltar, recuando diante de um inimigo até então desconhecido. Lutariam ou sucumbiriam.
A vida costuma encaminhar-nos a situações complexas, em que o recuo se afigura impossível. Segurança interior, autoconfiança, fé, coragem, capacidade de adaptação, são testadas nessas ocasiões.
Temos que estar alertas e preparados para as mudanças. Elas acontecem quando menos esperamos.
Todos nós somos dotados de talentos, em maior ou menor grau de desenvolvimento. O uso desses dons determina nosso crescimento. Há ocasiões em que Deus requisita nossos préstimos em Sua Seara. Essa convocação divina pode implicar em mudanças, talvez até radicais, em nossas vidas. Atenderemos ao chamamento de nosso Divino Pai, ou continuaremos com a nossa já viciada rotina?
Não importa se somos inconscientes disso ou se nos encontramos acomodados, indiferentes ao sofrimento do mundo, cedo ou tarde seremos chamados a servir. No início talvez até resistamos. Mas chegará o momento da decisão, em que nossas existências tomarão outro rumo. Saulo era um ferrenho perseguidor dos cristãos. Na estrada de Damasco transformou-se: “Saulo, Saulo, por que me persegues? Duro é para ti recalcitrar contra os aguilhões.” Saulo transformou-se em Paulo, assumindo uma nova realidade. Abandonou o invejável “status” de doutor da Lei. Teve a coragem de deixar os de seu credo.
Renunciou suas amizades e suas posses, para abraçar as ideias do nazareno, um misto de blasfemo e impostor no entender dos fariseus.
É preciso, entretanto, uma férrea disposição para atravessar as agruras dessa fase de transição. Incompreendido, injustiçado, vilipendiado até, o aspirante há de perseverar. Terá muita luta pela frente, sem dúvida. Mas a crueza da porfia não deve abatê-lo. É duramente provado. Cai. Ergue-se. Fracassa novamente. Anima-se de esperança. Aflige-se mortalmente com a decepção. Ascende mais uma vez. Na experiência, renova-se. O mundo dele necessita. O Cristo necessita dele. Deus nele habita. Não há razão para temores. Vive na fonte do eterno Bem.
O caminho do apostolado é assim mesmo. Exige mudanças, crucifica o eu inferior. É como o campanário de uma igreja: largo na base, estreitando-se à medida que sobe. No cume, só resta a cruz. Não se pode olhar para baixo, para trás. Só resta subir, subir sempre…
(Publicado na Revista Serviço Rosacruz de agosto/1978)