Arquivo de tag igreja antenicena

PorFraternidade Rosacruz de Campinas

Pergunta: Algo está faltando na sua Bíblia?

A maioria das edições da Bíblia utilizada pelos nossos irmãos e irmãs protestantes tem a versão do Rei James. E mesmo outras versões diferem da Bíblia utilizada pelos nossos irmãos e irmãs católicos e de outras Religiões Cristãs. Muitas pessoas acreditam que a Bíblia utilizada pelos nossos irmãos e irmãs protestantes seja realmente completa. A menos, isto é, que tenham visto a Douay-Rheims (tradução da Bíblia, a partir da Vulgata, em inglês pelos membros do English College Douai, a serviço da igreja católica) ou outra versão católica, que não tem 66, mas 80 livros (isso porque há diferenças entre a Bíblia católica e a Bíblia protestante: católica tem 73 livros e a protestante 66 livros; a Bíblia protestante não tem os seguintes Livros: Tobias, Judite, Sabedoria, Baruc, Eclesiástico, I e II Macabeus, Trechos de Ester – 10, 4-16 – e Trechos de Daniel – 3, 24;20, 13-14).

Entre o Antigo e o Novo Testamento há 14 livros adicionais, classificados pelos nossos irmãos e irmãs protestantes como “apócrifos” (do grego apokryphos, escondido).

Surgem as perguntas: por que eles não estão nas Bíblias protestantes? Como ou por que motivo eles foram removidos? Eles pertencem ao cânone dos livros bíblicos? Um resumo dos fatos essenciais ajudará o leitor a tirar suas próprias conclusões.

No século III a.C., havia no Egito cerca de 70 ou 72 eruditos judeus que, a pedido de Ptolomeu II, prepararam o que veio a ser conhecido como a versão Septuaginta (da palavra 70) do Antigo Testamento. Ela incluía os apócrifos. Esse foi o Antigo Testamento usado por Nosso Senhor e os Apóstolos e sem reservas endossado pelos “pais da igreja primitiva”. Nossas Escrituras não incluem os… livros apócrifos… No entanto, o menino Jesus, provavelmente, estava familiarizado com eles e Ele se lembrou deles quando era adulto, porque são citados em Seus discursos registrados no Novo Testamento. A Igreja antenicena (antes do Concílio de Niceia, em 325 d.C.) os aceitou.

Em 382 d.C., um erudito conhecido como Jerônimo foi comissionado pelo Papa Dâmaso para revisar a versão latina da Bíblia, que conhecemos como a Vulgata. Os livros apócrifos faziam parte dela. Por mais de um milênio foi indiscutivelmente a Bíblia da Igreja. Quando Wyclif e Purvey prepararam a primeira tradução da Bíblia para o inglês, 1382-1388, os escritos apócrifos foram mantidos. Isso também é verdade para a primeira tradução alemã do texto em latim, feita mais ou menos na mesma época.

A primeira Bíblia publicada com os apócrifos separados foi a de 1520, em Wittenberg, Alemanha, por um certo Andreas Bodenstein, mais conhecido pelo nome de sua cidade natal, Karlstadt, e seguidor de Martinho Lutero. Ele acrescentou uma nota informando que esses livros eram “dignos da proibição do censor” — inferiores. Era uma Bíblia escrita em latim.

A primeira Bíblia em vernáculo — o holandês — que segregou os livros apócrifos, colocando-os todos após o Antigo Testamento, apareceu em 1526, em Antuérpia. Também incluía uma nota chamando a atenção para a opinião de que fossem inferiores aos demais livros. Em 1530, uma versão suíça semelhante apareceu; ambas foram emitidas por autores que não eram católicos.

Em 1534, foi publicada uma tradução completa da Bíblia, em alemão, por Lutero. Mais uma vez, esses 14 livros estavam juntos, logo após Malaquias, com um prefácio: “apócrifos — isto é, livros que não são considerados iguais às Sagradas Escrituras, mas são proveitosos e bons de ler”. Ele não explicou quem determinou que esses escritos “não são considerados iguais”, nem o porquê.

No ano seguinte, a primeira Bíblia em francês foi impressa por Pierre Robert Olivetán, perto de Neuchâtel, Suíça. Os apócrifos foram incluídos nessa edição, como também nas publicações francesas que vieram depois. Grande reformador protestante, o francês João Calvino (Jehan Cauvin), citou os apócrifos — embora apenas 10 vezes, enquanto se referiu aos outros 4.000 vezes —, mas nunca para apoiar posições doutrinárias.

Também, em 1535, apareceu a primeira Bíblia em inglês, impressa por Myles Coverdale. Os 14 livros apócrifos foram todos abrigados entre o Antigo e o Novo Testamento. Assim também ocorreu com todas as seguintes Bíblias protestantes em inglês: a Bíblia de Mateus de 1537; a Bíblia de Taverner e a Grande Bíblia de 1539; e a Bíblia de Genebra (produzida pelos puritanos) de 1560.

Enquanto isso, para conter a revolta protestante, a Igreja Católica Romana convocou o Concílio de Trento (1545 — 1563). Lá, os escritos apócrifos receberam o endosso mais forte possível. Naturalmente, isso não passaria despercebido aos protestantes, embora a reação deles viesse com uma lentidão surpreendente. Assim, o Livro de Oração Anglicano Protestante de 1549 ainda aceitava os apócrifos. Treze anos depois, o governo inglês publicou um documento muito interessante, os Trinta e Nove Artigos de Religião, definindo a ortodoxia oficial. Essa foi a época da Rainha Elizabeth I, cujo objetivo transcendente era acabar com a controvérsia religiosa como parte da sua Via Media (Caminho do Meio). Consequentemente, o Artigo VI pode ser interpretado como anti-apócrifo e o Artigo XXXV como pró-apócrifo.

Em 1581, a primeira Bíblia eslava (russa) foi publicada. Aqui, os livros apócrifos foram distribuídos por todo o Antigo Testamento. Mas a Igreja Ortodoxa Russa mudou gradualmente sua posição até que, em 1839, seu “Catecismo Mais Longo” excluiu, por completo, os apócrifos do Antigo Testamento. Voltando nossa atenção mais uma vez para o Ocidente, descobrimos que, em 1599, novas edições da Bíblia de Genebra começaram a omitir os 14 livros. Essa foi uma época de maré alta para os puritanos; eles se propuseram a “purificar” a Igreja da Inglaterra de todas as coisas que eles chamavam de “Romanas”. Isso incluía os livros tão singularmente apoiados pelo Concílio de Trento, 53 anos antes. Como disse o famoso estudioso Sir Frederick Kenyon, “os puritanos perseguiram os apócrifos”.

Mas, 1611 foi um ano de maré baixa para os puritanos, quando a versão do Rei Jaime apareceu. O Rei Jaime, que patrocinou a tradução (por isso que o prefácio ou a introdução, ainda vista em algumas edições da Versão do Rei Jaime, é tão ressaltada), foi também quem fez muitos puritanos fugirem para os Estados Unidos da América. Essa versão incluía os apócrifos. Não apenas isso, mas em 1615 George Abbot, arcebispo de Canterbury e, portanto, o “líder ativo” da Igreja da Inglaterra, sob o rei, ameaçou com um ano de prisão qualquer um que imprimisse uma Bíblia sem os apócrifos! Mas os “omissores” dos apócrifos tinham uma grande vantagem. As Bíblias sem os apócrifos tinham uma regalia competitiva — podiam ser colocadas à venda por um preço mais baixo. E devido às condições instáveis na Inglaterra, sob o governo de Carlos I (1625 — 1649) e o retorno da ascendência puritana sob a Comunidade de Cromwell (1649 — 1659), o decreto de Abbot não foi executado. Bíblias sem os apócrifos circularam em grande número. Exceto entre um grupo, os místicos. No espírito de amor Cristão, eles simpatizaram com as aspirações dos puritanos, embora tivessem sido perseguidos por eles, mas consideraram os 14 livros controversos como estando no mesmo nível dos outros.

Certamente, uma das principais publicações bíblicas e auxiliares por muitos anos tem sido a Concordância de Cruden. Sua primeira edição americana (1806) continha uma seção especial para os apócrifos; edições posteriores começaram a omiti-los. Uma razão pode ter sido que, em 1827, as sociedades bíblicas britânicas e americanas, que vinham incluindo os apócrifos em suas Bíblias, pararam de fazê-lo. Ainda assim, em 1894, quando a “Versão Revisada em Inglês da Bíblia” foi lançada, os 14 livros foram incluídos em algumas edições, embora em letras menores.

Um evento pouco conhecido, mas significativo, ocorreu em 1901, quando Eduardo VII da Inglaterra foi coroado. Por fim, pouco antes de o monarca beijar a Bíblia, antes de assinar o juramento de coroação, descobriu-se que ela, devidamente fornecida pela Sociedade Bíblica Britânica, não contava com os apócrifos. Outra, com os apócrifos, foi adquirida rapidamente, porque a lei do Reino Unido ainda exigia que uma Bíblia de 80 livros fosse usada nas instalações reais.

Não se pode negar que, ao longo dos anos, os livros apócrifos exerceram considerável influência cultural. O famoso poeta inglês do século 7, Caedmon, usou trechos deles. Isso fez Chaucer, sete séculos depois, em seus célebres Contos de Canterbury e outros escritos.

Colombo foi influenciado pelos apócrifos para zarpar em 1492! É um fato bem conhecido que ele foi influenciado pelo Imago Mundi (a forma do mundo) de Pierre d’Ailly para acreditar não apenas que a Terra era redonda, mas também que apenas um sétimo da superfície da Terra é coberto por água; portanto, as terras fabulosas a oeste não podiam estar muito longe. Essa noção foi baseada em uma interpretação errônea de II Esdras 6: 42, 47, 50, 52 de d’Ailly.

Shakespeare faz mais de 80 referências aos apócrifos (veja em Shakespeare and Holy Scripture, Thomas Carter; Shakespeare’s Biblical Knowledge and Use of the Book of

Common Prayer, Richard Noble), embora possa ser mera coincidência que duas de suas filhas tenham recebido o nome de heroínas apócrifas, Susanna e Judite. John Milton também ficou em dívida com esses livros. Por exemplo, seu Paraíso Perdido traz referências à Sabedoria de Salomão, mesmo que o transcendentalista americano Nathaniel Hawthorne possa ser ligado a II Macabeus.

Todos os anos, no Natal, milhões cantam “Noite Silenciosa, Noite Sagrada” e “Ó, Noite Santa”. Ainda assim, em Lucas 2:11, lemos que Jesus nasceu “hoje”. De onde vem a crença popular em um presépio noturno? Pode ser rastreada até a interpretação de Sabedoria 18:14-16, por parte dos pais da igreja primitiva. Os conhecedores de arte sabem que Judite, Tobit, Susanna e Holofernes inspiraram obras-primas. Suas histórias estão todas nos livros controversos da Bíblia.

Mesmo dessa visão geral bastante abreviada, alguns fatos indiscutíveis emergem: por mais de três quartos da era Cristã, os apócrifos foram universalmente aceitos e exerceram uma poderosa influência cultural. Também tem isto: a enorme lacuna de 400 anos entre o Antigo e o Novo Testamento. Se alguém lesse uma história dos EUA que omitisse eventos entre a Guerra Civil e a Segunda Guerra Mundial — menos de um quinto do intervalo de tempo entre Malaquias e Mateus —, perceberia imediatamente que algo estivesse faltando. Isso é verdadeiro, se alguém lê uma Bíblia sem os apócrifos.

“À medida que a videira produziu, eu – Sabedoria – ganhei sabor agradável e minhas flores são frutos de honra e riqueza. Eu sou a mãe do amor justo, do temor a Deus, do conhecimento e da esperança sagrada: Eu, portanto, sendo eterna, dou-me a todos os meus filhos, que têm o nome Dele. Venham a Mim, todos vocês que desejam se alimentar de Mim, e encham-se dos meus frutos. Porque o meu memorial é mais doce do que o mel e a minha herança, mais do que o favo de mel. Aqueles que Me comem ainda terão fome. Quem Me obedece nunca será confundido e os que trabalham por Mim não errarão.” (Eco 24:23-30)

“Pois enquanto todas as coisas estavam em quieto silêncio e aquela noite estava no meio do seu curso rápido, a Tua palavra Todo-poderosa saltou do Céu, do Teu trono real, como um feroz homem de guerra no meio de uma terra de destruição, e trouxe o Teu mandamento honesto como uma espada afiada.” (Sb 18:14-16)

“Temer ao Senhor é o princípio da sabedoria: ela foi criada junto dos fiéis, no ventre. Ela construiu um alicerce eterno com os homens.” (Eco 1:16)

Sabedoria é o sopro do poder de Deus e uma pura fonte que nasce da Glória do Todo-poderoso… o brilho da luz eterna, o espelho imaculado do poder de Deus e a imagem de Sua Bondade.” (Sb 7:2-26)

À margem da versão de 1611 do Rei James, não há menos do que 113 referências a passagens relacionadas nos apócrifos; 102 no Antigo Testamento e 11, no Novo (alguns exemplos: Mt 6:7; Eco 7:14; Mt 23:37; IIEsd 1:30; Mt 27:43; Sb 2:15-16; Lc 6:31; Tob 4:15; Lc 14:13; Tob 4:7; Jo 10:22; IMb 4:59; Rm 9:21; Sb 15:7; Rm 11:34; Sb 9:13; IICor 9:7; Eco 35:9; Hb 1:3; Sb 7:26; Hb 11:35; IIMb 7:7). Para detalhar aqui apenas duas dessa lista: Jo 10:22 fala sobre a Festa da Dedicação; IMb 4:59 relata sua origem pós-Antigo Testamento. E não pode haver dúvida de que o apóstolo Paulo emprestou muito dos apócrifos para sua epístola aos romanos (Rm 1:20-21; Sb 13:5-8; Rm 1:22; Sb 13:1, 12:24; Rm 1:26; Sb 14:24; Rm 1:29; Sb 14:25-27; Rm 9:20; Sb 12:12; Rm 9:21; Rm 9:22; Sb 12:20).

Não há melhor maneira de considerar a relação dos apócrifos com o resto da Bíblia do que os ler. Assim, alguém se perguntará em que base os 14 livros foram afastados dos outros 66. É frequentemente dito que eles não tenham qualidade devocional como os outros 66. Claro que essa é uma forma muito subjetiva de fazer julgamentos. Mas não há muitas partes dos 66 livros que podem ser consideradas deficientes da mesma maneira? As genealogias no Antigo Testamento, por exemplo, ou as histórias de muitas guerras sangrentas? Também é um fato que John Bunyan, famoso autor de Pilgrim’s Progress (O Progresso do Peregrino), em um momento de desânimo espiritual, encontrou um bálsamo para sua alma depois de pesquisar na Bíblia por “mais de um ano”, em Eclesiástico 2:10. Também pode ser observado que um grupo devoto de Cristãos Protestantes dirigiu seu clero, em casamentos, a ler não só o Antigo e o Novo Testamento, mas também o livro apócrifo de Tobias, pois ele “apresenta uma bela lição que fortalece os piedosos e tementes a Deus na Terra, especialmente no que diz respeito ao casamento”.

É certo que os apócrifos possam ser considerados “diferentes”. No entanto, essa é realmente uma afirmação vaga. Os outros 66 livros também são bastante diferentes uns dos outros. No Antigo Testamento, temos os livros históricos, a literatura sapiencial, os profetas maiores e os menores. Algumas partes de apenas um livro dos 66 são muito diferentes, razão pela qual, por exemplo, os capítulos que vão do quarenta ao cinquenta e cinco, no Livro de Isaías, são conhecidos como o Deutero-Isaías… Não da autoria de Isaías, mas obra de outro. No Novo Testamento, existem os Evangelhos, Atos, Epístolas e Apocalipse. Rute e Apocalipse são muito diferentes; também Crônicas e Coríntios, Provérbios ou Filipenses. Qualquer pessoa inclinada a denegrir os apócrifos precisa ser lembrada de que partes do Antigo Testamento, se fossem transformadas em filmes, receberiam uma classificação X, na melhor das hipóteses; porém não são questionadas. Isso é consistente?

Talvez a chave mestra para o que pertence à Bíblia é encontrada no fato de que reais eventos físicos são usados para esconder profundas verdades espirituais. Pode haver outra base viável para permitir certas partes do Antigo Testamento no cânone bíblico? Existe outra maneira pela qual as muitas contradições aparentes da Bíblia, com base em uma interpretação literal, podem ser harmonizadas?

Por causa da sua função como elo entre o Antigo e o Novo Testamento, os estudantes da Bíblia sofrem uma perda por negligenciar os apócrifos — mas, uma ainda maior por ignorar a chave para compreender todos os três: a abordagem esotérica que é apresentada pelo Cristianismo Místico. A literatura da Sabedoria Ocidental tem inúmeras referências aos apócrifos.

A palavra “apócrifo” também pode significar que os escritores dos livros quisessem que seu significado fosse enigmático ou aparente apenas para os Iniciados. Houve muitos escritos desse tipo no período imediatamente anterior e posterior ao início da era Cristã.

Aqueles familiarizados com as Escrituras extracanônicas, além dos apócrifos, estarão interessados em saber que ‘as Pseudoepígrafes’ ou Escrituras ‘falsamente inscritas’ não são fraudulentas; a falsa inscrição é apenas um artifício… pelo qual um escritor posterior poderia expressar suas ideias sob o abrigo de um nome do escritor anterior e aceito.

(publicado na Revista Rays from the Rose Cross de setembro-outubro de 1995 e traduzido pela Fraternidade Rosacruz em Campinas – SP – Brasil)

Idiomas