O Diálogo e a Evolução
Toda coexistência é, necessariamente, uma forma de diálogo; de evocação e invocação do íntimo; de recurso ao outro e a si próprio.
É contraditório que, numa época em que os meios de comunicação se aprimoram, aproximando os seres humanos pela eliminação das distâncias – estejamos tão carentes de um autêntico diálogo, que consiste em nos comunicarmos essencialmente, íntimo a íntimo.
A maioria considera que uma pessoa civilizada é a que adquire a habilidade de viver com todos, sem chocar-se com ninguém. Chamam, a isso, a virtude da diplomacia, tacto, “savoir-vivre”, prudência, etc. Examinemos melhor esta atitude.
A experiência da vida nos vai revelando que é perigoso entrar na intimidade de uma pessoa; é delicado tocar numa existência. Uma palavra a mais, uma palavra ocasional mal colocada e sem intenção, basta para desencadear reações surpreendentes, desproporcionadas. Sabemos porquê. O ser vai gravando experiências e cada uma delas constitui uma “máscara” ou um “eu”. Esse “eu” reage sempre, de forma positiva ou negativa, quando ocorre algo semelhante ao fato que ele guarda. É uma associação. Uma interferência do passado.
Contra essa ameaça, a tradição de “bem viver em sociedade” foi catalogando normas para as pessoas “bem-educadas”. São fórmulas pré-fabricadas e temas de conversa sem perigo para ninguém, fala-se do tempo, fatos do dia etc., tal como na peça crítica “Pigmaleão” de Bernard Show, em que se provou que podiam transformar uma moça de baixo nível social numa perfeita “mademoiselle”, mediante a observação cuidadosa de certo verniz convencional.
É corrente que devemos manter a discrição reticente, que permita a cada indivíduo escapar, tanto quanto possível, ao perigo dos outros. E nisto as pessoas estão fugindo também de si mesmas, para evitar a reação de seus “eu’s”, quando se expõem a certas experiências e ultrapassam os limites de seu modo de ser.
Do ponto de vista esotérico, isto é um extremismo inconveniente, que anestesia o desenvolvimento interno.
A fuga à experiência, para assegurar uma vida tranquila e descuidada é, no fundo, acomodação à personalidade viciosa que não quer mudar. O desafio é inevitável, apesar da reação dos “eu’s”, convidando o indivíduo ao mais alto nível de consciência. Toda transformação é uma revolução que instala insegurança no antigo e sua resistência ao novo, que a evolução solicita. O processo de evolução se desenvolve mais rapidamente quando nos abrimos às contribuições dos outros, com seus diferentes e novos ângulos de visão.
Permanecer em torno de suas próprias possibilidades é entrar num círculo vicioso, onde nos cansamos de andar, na ilusão de ir em direção à meta.
Quando um camponês vem à cidade grande, choca-se facilmente na rua com os transeuntes; porque está habituado a muito espaço e não desenvolveu a habilidade de caminhar entre multidões. Já o que mora na cidade, por força do hábito, tem grande maleabilidade e sabe manter distância com os outros, apesar da proximidade e promiscuidade.
É interessante estabelecermos correlação psicológica. O camponês é simples e usa de uma franqueza rude ao morador da cidade. Este, num outro extremo, usa de uma insinceridade falsa, como num esforço de definir uma zona de segurança contra a ameaçada e constante usurpação dos outros.
Para este é uma virtude social a arte da reticência, que permite continuar mascarado e cruzar com os outros, sem pensar em ver neles alguma coisa mais que a máscara.
Assim, torna-se inevitável o choque, antes de haver o autêntico diálogo.
Pela experiência social, ocorre o encontro entre duas existências que se revelam, uma à outra e cada uma a si própria, pelo choque da presença que nos obriga a nos descobrirmos tal como somos – e não como pensamos que somos.
Feliz de quem pode se conhecer, através do diálogo e confronto com outro estado de consciência afim. O destino está sempre atuando pela lei de “atração de semelhantes”, pondo face-a-face dois caracteres afins para que ambos se descubram, através dos defeitos do outro, que são os defeitos de si mesmo – e que por isso mesmo inconscientemente detesta.
Se chegam à essa experiência e sem despertar, têm possibilidades de manter relativa harmonia matrimonial e nos relacionamentos em geral, “conservando a prudência nos justos limites”. Só através de uma vida de atenta auto-observação é que vamos aprendendo a definir os limites da prudência de trato, que varia segundo o meio, a educação, etc.
Regra geral, porém, as pessoas fogem de si mesmas; negam-se ao diálogo e quando a vida as lança numa intimidade obrigatória, os choques culminam em separação, porque dificilmente chegam a admitir suas próprias falhas, para poderem encontrar-se num espaço de harmonia, cada um compreendendo e aceitando a si mesmo e ao outro, tal como é.
No estágio atual, o amor, a amizade, provocam esse desvelar-se e revelar-se, para que cada um chegue à uma consciência de si próprio, que lhe faltava antes. A cada desdobramento o indivíduo se abre e se afirma, dinamizando potencialidades latentes. Mas nesse revelar-se, nesse abrir do íntimo, surgem também à tona da consciência, o melhor e o pior de cada um de nós, num antagonismo chocante, o que faz com que o eu e o tu se liguem e se desliguem, na procura de uma unidade que os englobe, conciliando seu egoísmo maior ou menor. Só a compreensão e aceitação de si mesmo pode fazer nascer o terceiro elemento que concilie os opostos, internamente e na relação com o outro.
O relacionamento social é marcado por um constante religar-se e desligar-se dos outros. Um aborda o outro e se deixa abordar, ensejando uma experiência sempre nova, de tristeza ou de alegria, convidando-nos a atingir mais altos níveis de evolução e de compreensão, no fluxo e refluxo das vicissitudes cotidianas.
Observem a dificuldade que a maioria tem, de participar de um debate que resulte em mútuo proveito e edificação. No debate, cada um se expõe ao perigo do outro, cada um levando seus condicionamentos e complexos, comprometendo a universalidade do tema, a impessoalidade da verdade. Ninguém pode dizer antecipadamente como irá terminar a aventura, de finalidade comum. Raros são os indivíduos que se situam, um e outro, em relação a uma mesma verdade, manifestando fidelidade aos mesmos valores que lhes motiva o trabalho de equipe.
Muita gente, tida por instruída, incorre nessa falha de equipe. É um contrassenso porque o sentido etimológico de instruir (do latim) é construir, edificar. A mesma deficiência ocorre nos meios profanos e religiosos, quando seria de desejar, que os verdadeiramente religiosos (ligados ao Divino interno) estivessem mais vigilantes com sua natureza inferior.
Só o que sinceramente busca a verdade impessoal está preparado para o diálogo. O que justifica o diálogo é a vocação comum que incita duas pessoas a transcenderem a si mesmas. A verdade constitui o terceiro elemento que enseja o diálogo e o converte numa relação a três termos.
Na obra “Timon de Atenas”, Shakespeare desmascara a falácia da usual generosidade. Timon gasta sua fortuna em banquetes com falsos amigos e quando chega à falência, recorre a eles e ninguém o ajuda. Sensibilizado e com mágoas incuráveis contra os homens, condena-se a um exílio voluntário entre animais, como sinal de alienação e confissão de fracasso no diálogo da vida. Ora, a verdadeira generosidade guarda os limites da prudência e discernimento. Sobretudo, compreende e aceita cada qual como ele é sem permitir que o relacionamento exorbite sua integralidade.
Mais que generosidade, o que suscita, justifica e valoriza o diálogo é o AMOR. O amor, com seu impulso de coalizão e no sentido lato, é, no fundo uma forma de pedagogia; e toda pedagogia é uma forma de amor. Sem este fator essencial, qualquer expositor não atinge seu fim.
A educação não tem sentido se não há convergência de vontade de todos os participantes, a um fim mais alto, em que suas intenções se juntam. A despeito das diferenças de níveis, há uma confraternização de almas.
Diz Saint Exupéry que “o diálogo, com amor, em vez de fazer um olhar para o outro, leva os dois a buscarem um ideal comum”. De fato, amar é ajudar-nos mutuamente a alcançar o objetivo comum, razão de nossa existência. Ninguém pode furtar-se a esse dever, uma vez que o sente. Eis a regra de moral kantiana: “Deves, logo, podes”. O sentido amoroso de dever já traz consigo as condições e possibilidades de realização. Ora, onde melhor se pode realizar esse ideal, senão na Fraternidade? Nela, todos devem empenhar-se, através de um diálogo baseado no amor, no desejo de servir, inspirado na verdade que recebemos, para a missão educativa conducente à Universalidade.
O diálogo é o princípio do aprendizado. Ele defronta duas pessoas num propósito definido para que deem mútuo testemunho de suas possibilidades internas.
Pode parecer que o diálogo limite a verdade a um mecanismo de debate entre duas inteligências. Se forem duas personalidades auto afirmativas com pseudo-sentido de superioridade, essa limitação existirá. Mas se for a sinceridade e o amor que motivam o encontro, o diálogo, ao contrário, abre caminho à verdade, pelo circuito da pluralidade de pontos de vista que buscam conciliar-se, alargando os horizontes.
Cada um se ajuda, aceitando provisoriamente não ter razão e ser ignorante nas coisas que o outro expõe. Aceitando todas as coisas como possíveis, pondo de lado conceitos preconcebidos, o diálogo transpõe o monólogo, o monopólio da palavra, dando começo a um processo em que a verdade se expressa, não pela pessoa mesma, senão pela atmosfera indefinível de elevação, na qual é possível cumprir-se a promessa do Cristo: “Onde dois ou três se reunirem em Meu nome, ali estarei neles”. Em tal circunstância, a luz far-se-á, com toda a segurança.
(Revista ‘Serviço Rosacruz’ – 04/76 – Fraternidade Rosacruz – SP)