As Verdades Espirituais nos Mitos Antigos
No Livro Mistérios das Grandes Óperas, de Max Heindel, lemos: “Temos dito frequentemente, em nossas publicações, que um mito é um símbolo velado, contendo uma grande verdade cósmica, um conceito que difere radicalmente daquele que é geralmente aceito. Tal como apresentamos às nossas crianças livros em quadrinhos para transmitir lições que estão além de seu entendimento intelectual, assim os grandes Mestres deram à humanidade em formação esses símbolos. Dessa forma, de uma maneira inconsciente, uma apreciação dos ideais apresentados tem se gravado em nossos veículos mais sutis.”
O desenvolvimento espiritual, o progresso e a evolução requerem um esforço constante na consecução de objetivos maiores e ideais mais elevados do que aqueles que já alcançamos. A complacência e a satisfação própria não devem ter guarida na vida do aspirante espiritual. Assim como a verdade espiritual é eterna, igualmente eterna deve ser a busca daquela verdade.
Na busca da verdade deve haver uma mudança contínua, ou, mais precisamente, uma transformação. Tais mudanças não podem, todavia, acontecer repentinamente, do nada. Deve haver sempre o tempo de preparação que precede a mudança em si. As mudanças das quais falamos não devem ser mentalizadas como meramente alterações nas condições exteriores e circunstâncias, mas também como modificações ocorrendo dentro do próprio ser humano: modificações em seu estado de consciência, em seu nível de percepção, em seu grau de entendimento e compreensão, em sua capacidade de dirigir e controlar certas forças, e assim por diante.
Uma das vias de preparação através das quais o ser humano é conduzido a reconhecer e participar das mudanças que marcam seu progresso evolucionário é a mitologia. A mitologia está para a verdade espiritual na mesma relação que o corpo está para o Espírito. Em cada caso o primeiro é o traje que reveste o último.
No passado, quando o ser humano estava mais relacionado aos mundos espirituais do que atualmente, era igualmente consciente das forças espirituais que criavam as realidades que experimentava. Porém, essa percepção devia-se ao que podemos chamar de “uma consciência automática” — uma percepção que era recebida sem qualquer entendimento de seu significado ou participação autoconsciente em seu propósito.
Naquela época, as forças que trabalhavam através da humanidade conduziam o ser humano mais e mais em contato com o Mundo Físico que hoje conhecemos e no qual presentemente nossa consciência de vigília está focalizada. Em consequência, as verdades espirituais começaram a se revelar à sua consciência numa forma mais definida, ou seja, sua percepção das verdades espirituais começou a tomar forma em termos do Mundo Físico no qual estava cada vez mais vinculado. E estas formas tornaram-se símbolos das verdades que ele anteriormente percebia mais diretamente.
O Mundo Físico é um mundo de formas definidas. E formas definidas implicam em separatividade. A primeira manifestação da descida do ser humano para o Mundo Físico — de separatividade — foi a formação das raças, na qual agrupamentos humanos vivendo sob condições diferentes de clima e solo começaram a desenvolver características diferentes. Cada grupo começou a perceber as verdades espirituais em termos das condições peculiares que o cercavam e separavam dos demais. Dessa forma vieram à existência as muito diferentes mitologias, oriundas dessas diferentes culturas.
Não obstante a percepção da verdade espiritual aparecesse em diferentes roupagens, era ainda a mesma verdade essencial que se encontrava por detrás de todas elas. Essas verdades, falando ao ser humano através de seu mito, pareciam a ele mui real e viva, por mais absurda que possa parecer à nossa consciência moderna.
A consciência do ser humano atual não pode aceitar uma interpretação literal dos mitos antigos, como queremos crer que seres humanos daqueles tempos antigos faziam. Pode ser ainda que nem o ser humano da antiguidade acreditava em seus mitos no sentido literal, como imaginamos que ele cria. No entanto, acreditava na realidade literal que animava aqueles mitos. Todavia, ele não admitia isso. Tal ocorria devido a que ele ainda vivia a maior parte do tempo num estado de consciência automática que lhe permitia perceber e participar de uma coisa sem ter um entendimento consciente próprio da mesma.
Os requisitos que se apresentam ao ser humano moderno são de ordem bem diferente. A consciência automática deve ser descartada em favor de uma consciência própria, plena, vigilante. Somente dessa maneira o ser humano se capacitará a compreender a verdade que percebe, e, por meio dessa compreensão, se colocar numa posição de adquirir domínio de si mesmo e se tornar o dono de seu destino.
Essa transição de estado de consciência não ocorre de uma vez, e, nesse entretempo é possível que muitas complicações se apresentem. Quando ocorre a perda da consciência automática, então, e somente então, surge o perigo de que o ser humano comece a acreditar numa interpretação literal de seus mitos. Nesse ponto podem acontecer duas coisas. Uma consciência que começa a demandar mais e mais entendimento e explicação daquilo que percebe pode rejeitar os mitos que uma vez lhe falaram por causa do agora aparente absurdo. Ou, tornando-se incapaz de distinguir entre a roupagem exterior de um mito e a verdade interna que ele contém, alguém pode também se tornar incapaz de distinguir entre símbolos e realidades.
A tarefa que, hoje em dia, o ser humano enfrenta é a de apanhar a verdade espiritual direta e conscientemente onde ele antes apanhava indireta e automaticamente. Um estudo da mitologia pode auxiliá-lo a fazer isso, se ele a encarar da maneira apropriada. Cabe-lhe deixar de pensar nos mitos como coisas de mera curiosidade ou encantadores pequenos exemplos da ignorância dos povos antigos e pré-históricos. Deve reconhecer que há uma verdade espiritual que permanece atrás e constitui a origem de um mito, da mesma forma como há um ser espiritual como origem do corpo físico. Então, plenamente consciente, deve-se esforçar para perceber o que é aquela verdade espiritual que em outras idades lhe falava automaticamente. Com essa convicção vem o conhecimento, e desse conhecimento pode se desenvolver uma força que é a alma daquele mito. De forma idêntica, a alma do ser humano é criada por seu Espírito, trabalhando através de seus três diferentes veículos: os Corpos Denso, Vital e de Desejos.
Quando efetivamente chegamos a um entendimento lúcido das verdades espirituais contidos em certos mitos, isso produz um efeito sobre nossa consciência, difícil de explicar. É semelhante ao que experimentamos quando encontramos novamente um ser querido ou um amigo chegado, para nós desaparecido por muitos e muitos anos. O processo de amadurecimento que ambos atravessaram torna o reatamento muito mais agradável e possibilita a cada um compartilhar com o outro de uma maneira mais completa do que antes. Em cada um uma apreciação mais profunda em relação ao outro é despertada.
Acontece o mesmo com o ser humano e seus mitos. Esses mitos têm estado perdidos para ele por um longo tempo. E ele agora readquire algumas de suas forças e beleza, como uma criança em sua fascinação com contos de fada. Mas quando alcança uma compreensão autoconsciente de seus significados, esses mitos lhe falarão novamente. Esse novo relacionamento não é meramente uma continuação da mesma coisa que experimentou no passado, mas é a complementação de alguma coisa que não havia se completado naquela ocasião. As impressões que a mitologia causou em nossas vidas há tempos ressuscitarão para uma nova vida, na qual o ser humano, o microcosmo, pode ser auxiliado a encontrar o seu caminho de volta ao macrocosmo, plenamente consciente.
Naturalmente, devemos reconhecer que muitos mitos, da forma em que nos chegam, são uma corrupção de sua verdade, causada pela interferência de nossa consciência automática. Isso, porém, não deveria fazer com que desprezássemos seu valor integral.
Na Mitologia Grega encontramos a estória de Prometeu e Hércules. Prometeu era filho dos parentes de Titã e ele próprio era considerado como um Titã. Era campeão do ser humano e antagonista de Zeus, o chefe dos deuses, a favor do ser humano. Falava-se que ele havia moldado o ser humano da argila e muitas das artes da civilização eram atribuídas a ele. A dádiva com ele sempre associada é o fogo, que roubou do céu numa haste de cânhamo e trouxe à terra. Prometeu também enganou a Zeus na aceitação da pior parte nos sacrifícios que o ser humano oferecia aos deuses. Em punição a tudo isso Zeus confinou Prometeu ao pico de uma montanha e mandou uma águia para devorar seu fígado. Depois de idades de sofrimento Prometeu foi finalmente libertado por Hércules.
Hércules era filho de Zeus e Alomena, um deus e uma mortal. Foi o mais renomado dos matadores de gigantes e monstros — um aventureiro e irrequieto batalhador, que realiza façanhas aparentemente impossíveis. Embora Hércules participasse praticamente de qualquer espécie de aventura concebível, as mais importantes, além de libertar Prometeu, foram seus doze trabalhos.
Os mitos relacionados com Prometeu e Hércules são de especial importância aos estudantes dos Ensinamentos da Sabedoria Ocidental, pois falam do relacionamento de Lúcifer e Cristo com a evolução espiritual da humanidade.
A estória de Prometeu é a estória de Lúcifer, que, em desobediência ao mandamento de Jeová, despertou prematuramente no ser humano uma consciência de sua força criadora. Induziu o ser humano a se rebelar contra a diretriz de Jeová, impondo-se-lhe ser “como deuses, conhecendo o bem e o mal.” O elemento de ferro no sangue foi também introduzido por Lúcifer, capacitando o ser humano a produzir sangue quente no corpo, tornando-se um Espírito interno. Lúcifer trabalha no ser humano através de um dos três segmentos do cordão espinhal, representado pela haste de cânhamo, e incita suas intensas paixões, representadas pelo elemento “fogo”.
Dessa maneira, Lúcifer tem assumido um papel importante na criação do ser humano como ele hoje existe. Efetivamente, muitas de nossas mais valiosas posses devem-se à sua influência, seja em seu todo ou em parte. Entre elas incluem-se o cérebro e a laringe, a habilidade de pensar e adquirir conhecimento independentemente, a capacidade e a inspiração para conquistar o mundo material e a eventual habilidade de se tornar participante consciente nos mundos espirituais.
Em certo sentido, portanto, deve-se agradecer a Lúcifer pelo que tem feito por nós. A desobediência, todavia, tem seu preço, e, ambos, Lúcifer e o ser humano, têm tido o que pagar. O ser humano, através das penas e sofrimentos, da dor e das lutas, pelo mau uso de seu conhecimento e de sua força criadora, despertados e estimulados por Lúcifer. Lúcifer tem de pagar através da perda de sua liberdade e subsequente dependência do ser humano. Ele evolui através da intensidade de sentimento, que só pode provocar através do ser humano. Dessa maneira, tenta nos conduzir às profundezas de nossas emoções. E, se nos permitimos que estas vivifiquem nossos desejos e paixões inferiores, então ambos, ele e nós seremos arrastados para dentro da cova. Porém, se nos afirmamos e lhe permitimos somente intensificar nossas mais refinadas e edificantes emoções, então estaremos conquistando a redenção, tanto de Lúcifer como da humanidade.
A perda da liberdade de Lúcifer é simbolizada por Prometeu sendo acorrentado no pico da montanha. A águia, um símbolo do Signo zodiacal Escorpião, que rege a força criadora no ser humano, devora o fígado de Prometeu. O fígado é a raiz da ligação entre o Corpo Denso e o Corpo de Desejos. Assim indica-se que a redenção de Lúcifer e o fim de sua influência negativa sobre o ser humano só podem se efetivar mediante a purificação e o controle de nossas emoções.
Com sua própria força, todavia, a grande maioria da humanidade é incapaz de transformar a influência negativa de Lúcifer num fator para o bem. Portanto é necessário dar-lhe alguma espécie de auxílio. E esse auxílio veio com Jesus Cristo.
Recordamos que Hércules nasceu de seres divinos e mortais, indicando a natureza composta de Jesus Cristo. Cristo é o mais elevado Iniciado dos Arcanjos, o Espírito Solar, pela Palavra do Qual todas as coisas de nosso sistema solar foram criadas. Jesus foi o mais nobre e puro ser humano disponível na ocasião do advento de Cristo. Foi, portanto, escolhido como o veículo através do qual Cristo se manifestou na Terra durante Seus três anos de ministério como Jesus-Cristo, do batismo à crucificação.
Durante Sua curta permanência na Terra, usando um corpo humano, Cristo foi capaz de passar e sobrepujar todos os diferentes males e tentações aos quais o ser humano está sujeito. Isto é simbolizado pelos doze trabalhos de Hércules, que representa toda a variedade de experiências que sobrevêm ao ser humano através dos doze Signos do Zodíaco. Passando através do Mistério do Gólgota, Ele nos deu o poder de também ultrapassar todos esses males e tentações. Dessa maneira, através do poder de Cristo, podemos vencer o mal com o bem, para a redenção da humanidade e de Lúcifer. Assim é que Hércules finalmente consegue libertar Prometeu e terminar seu sofrimento.
Muitos mitos e lendas contam essa mesma estória. Portanto, há uma lista de muitos lideres e mestres espirituais que padronizaram suas vidas com base nessa estória. Se não aprendemos a distinguir o símbolo da realidade, é possível incorrermos em grande erro. Esse erro é acreditar em que a vida de Jesus Cristo é apenas uma outra vida padronizada nessa mesma arquetípica estória, nada tendo de peculiar que O distinguisse dos outros de uma categoria idêntica.
A verdade é que a vinda do Cristo se constituiu no único e maior evento na história espiritual da humanidade. Todos os mitos, lendas e vidas de seres humanos de poder espiritual que precederam a Cristo serviram para preparar a consciência humana para aquele evento; apenas anteciparam um vislumbre daquilo que viria. Em Cristo temos aquilo que foi enunciado; temos a realização daquilo que foi preparado. Em Jesus Cristo temos a verdadeira presença de Deus na Terra; a presença do Criador em Sua Criação. Todos os que vieram antes foram apenas Seus servidores. Todos os que vierem depois, seguirão Suas pegadas.
Portanto, se somos capazes de perceber corretamente isso dentro de nós mesmos, reconhecemos que certos mitos, lendas e vidas de seres humanos de poder espiritual prepararam o ser humano para entender essa verdade: “que ante o nome de Jesus Cristo todo joelho se dobra e toda boca deve confessar que Jesus Cristo é o Senhor, para a Glória de Deus Pai.”
(Traduzido da Revista Rays from The Rose Cross e Publicado na Revista Serviço Rosacruz de novembro/1977)