Os Dois Polos do Amor: uma força ativa e uma atividade?
O amor é uma força ativa no ser humano; uma força que irrompe pelas paredes que separam o ser humano de seus semelhantes, que o une aos outros; o amor leva-o a superar o sentimento de isolamento e de separação permitindo-lhe, porém, ser ele mesmo e reter sua integridade. No amor, ocorre o paradoxo de que dois seres sejam um e, contudo, permaneçam dois.
Ao dizermos que o amor é uma atividade, enfrentamos uma dificuldade que reside na significação ambígua desta palavra. Por “atividade”, no emprego moderno do termo, queremos, normalmente, referir-nos a uma ação que produz mudança numa situação existente, por meio de gasto de energia. Assim, um ser humano é considerado ativo quando faz negócios, estuda, trabalha ou dedica-se a esportes. Todas estas atividades têm isto em comum; dirigem-se para um alvo exterior a ser alcançado. O que não se leva em conta é a motivação da atividade. Veja-se, por exemplo, um individuo impelido a incessante trabalho por um sentimento de profunda insegurança e solidão; ou por outra, impulsionado pela ambição ou pela avidez por dinheiro. Em todos esses casos a pessoa é escrava de uma paixão, e sua atividade é de fato uma “passividade” porque ela é impelida; é o paciente e não o “ator”. De outro lado, alguém que se assente calmo e contemplativo sem outro alvo que não o de experimentar-se e a sua unidade com o mundo, é considerado como “passivo”, porque não está “fazendo” coisa alguma. E, na verdade, esta atitude de meditação concentrada é a mais alta atividade que existe, uma atividade da alma, só possível sob condições de independência e liberdade interiores. Um conceito de atividade moderno refere-se ao uso de energia para consecução de metas externas, o outro conceito de atividade refere-se ao uso dos poderes inerentes ao ser humano, sem que importe a produção de qualquer mudança exterior. Este último conceito de atividade foi formulado com muita clareza por Spinoza (N.R.: Baruch de Espinoza foi um dos grandes racionalistas do século XVII dentro da chamada Filosofia Moderna, juntamente com René Descartes e Gottfried Leibniz).
Diferencia ele os afetos entre ativos e passivos, “ações” e “paixões”. No exercício de um afeto ativo, o ser humano é livre, é o senhor de seu afeto; no exercício de um afeto passivo, o ser humano é impelido, e objeto de motivações de que ele próprio não tem consciência. Assim Spinoza chega à afirmação de que virtude e poder são uma só e a mesma coisa. A inveja, o ciúme, a ambição, qualquer espécie de cobiça são paixões; amor é uma ação, a prática de um poder humano, que pode ser exercido com liberdade e nunca como resultado de uma compulsão.
O amor é uma atividade, e não um afeto passivo; é um “erguimento” e não uma “queda”. De modo mais geral o caráter ativo do amor pode ser descrito afirmando-se que o amor, antes de tudo, consiste em dar, e não em receber.
Que é dar? Embora pareça simples a resposta a esta pergunta, ela, em verdade, é cheia de ambiguidades e complexidades. O equívoco mais vastamente espalhado é o que entende que dar é “abandonar” alguma coisa, ser privado de algo, sacrificar. A pessoa cujo caráter não se desenvolveu além da etapa da orientação receptiva, explorativa ou amealhadora, experimenta o ato de dar dessa maneira. O caráter mercantil deseja dar, mas, só em troca de receber; dar sem receber, para ele, é ser defraudado. Aqueles cuja principal orientação é não produtiva sentem que dar é um empobrecimento. A maioria dos indivíduos desse tipo, portanto, recusa dar. Alguns fazem do ato de dar uma virtude, para eles, reside no próprio ato de aceitação do sacrifício.
Para eles, a norma de que é melhor dar do que receber significa que é melhor sofrer privação do que experimentar alegria.
Para o caráter produtivo dar tem um sentido inteiramente diverso. Dar é a mais alta expressão da potência. No próprio ato de dar, ponho a prova minha força, minha riqueza, meu poder. Essa experiência de elevada vitalidade e potência enche-me de alegria. Provo-me com superabundante pródigo, cheio de vida e, portanto, como alegre.
Não é difícil reconhecer a validez desse princípio aplicando-o a vários fenômenos específicos. Na esfera das coisas materiais, dar significa ser rico. Não é rico quem muito tem, mas quem muito dá. O avaro que ansiosamente receia perder alguma coisa é, psicologicamente falando, o indivíduo pobre, o empobrecido, não importa quanto possua. Quem é capaz de dar de si, este sim é rico. Põe-se à prova como quem pode conceder de si aos outros. Só quem for privado de tudo quanto vá além das mais simples necessidades da existência será incapaz de gozar o ato de dar coisas materiais. Mas a experiência diária mostra que aquilo que alguém considera como necessidade mínima depende tanto de seu caráter quanto de suas posses efetivas. É bem sabido que os pobres são mais inclinados a dar do que os ricos. Não obstante a pobreza além de certo ponto pode tornar impossível dar, e assim é degradante, não só pelo sofrimento que causa diretamente, mas pelo fato de privar o pobre da alegria de dar.
A mais importante esfera de dar, entretanto, não é das coisas materiais, mas está no reino especificamente humano. Que dá uma pessoa à outra? Dá de si mesma, do que tem de mais precioso, dá se sua vida. Isto não quer necessariamente dizer que sacrifique sue vida por outrem, mas, que lhe dê aquilo que em si tem vivo: dê-lhe de sua alegria, de seu interesse, de sua compreensão, de seu conhecimento, de seu humor, de sua tristeza – de todas as expressões e manifestações daquilo que vive em si. Dando assim de sua vida, enriquece a outra pessoa; valoriza-lhe o sentimento da vitalidade ao valorizar o seu próprio sentimento de vitalidade. Não dá a fim de receber; dar é, em si mesmo, requintada alegria. Mas, ao dar, não pode deixar de levar alguma coisa à vida da outra pessoa, e isso que é levado a vida reflete-se de volta ao doador; ao dar verdadeiramente não pode deixar de receber o que lhe é dado de retorno. Dar implica fazer da outra pessoa também um doador e ambos compartilham da alegria de haver trazido algo à vida. No ato de dar, algo nasce, e ambas as pessoas envolvidas são gratas pela vida que para ambas nasceu. Com relação especificamente ao amor, isso significa: o amor é uma força que produz amor. Só se pode trocar amor por amor, confiança por confiança. Se queremos gozar a arte, devemos ser uma pessoa de sensibilidade e preparo artístico; se queremos ter influência sobre outras pessoas, deveremos ser uma pessoa que tenha sobre outras pessoas influência realmente estimuladora e promotora. Cada uma de nossas relações com o semelhante e com a natureza deve ser uma expressão definida de nossa vida real, individual, correspondente ao objeto de nossa vontade. Se amamos sem atrair amor, isto é, se nosso amor é tal que não produz amor, se através de uma expressão de vida como pessoa amante não fazemos de nós mesmos uma pessoa amada, então nosso amor é impotente, é um infortúnio.
Mas não é só no amor que dar significa receber. O mestre é ensinado por seus alunos; o ator é estimulado por sua audiência; o psicanalista é curado por seu cliente – contando que não se tratem uns aos outros como objetos, mas se relacionam uns com os outros produtiva e genuinamente.
Quase não é necessário acentuar fato de que a capacidade de dar depende do desenvolvimento do caráter da pessoa. Pressupõe o alcançamento de uma orientação predominantemente produtiva; nessa orientação a pessoa superou a dependência, a onipotência narcisista, o desejo de explorar os outros, ou de amealhar, e adquiriu fé em seus próprios poderes humanos; coragem de confiar em suas forças para atingir seus alvos.
No mesmo grau em que faltem essas qualidades é ela temerosa de dar-se e, portanto, de amar. (Extraído de “A Arte de Amar” – Erich Fromm).
(Revista Serviço Rosacruz – 08/67 – Fraternidade Rosacruz – SP)
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